sábado, 17 de novembro de 2012

Como uma família se comporta quando alguém precisa de cuidados especiais

Doenças graves exigem dedicação redobrada de pessoas como Ângela de Castro, que cuida da mãe Melina, 88 anos, que sofre de Alzheimer


Foto: Tadeu Vilani / Agencia RBSJúlia Otero

Especial



Do lado da TV, um porta-retrato com a foto do casal pilchado. Ela com o vestido bordô e o cabelo vasto. Ele com o chapéu e o lenço. Sentado no sofá, em frente ao aparelho, o patrão de CTG Antenor Rodrigues, 65 anos, agora trajado com uma camiseta polo, conta que teve que dar uma pausa nas atividades tradicionalistas gaúchas. Por causa de sua prenda.



— Prenda significa regalo, presente — diz batendo a mão no peito — e por isso a gente tem que cuidar com carinho.



Sua companheira de 39 anos nos bailes da vida está doente. Enilda Maria de Souza Rodrigues, 61 anos, tem câncer. Em janeiro de 2011, começou uma luta contra tumores nos dois seios. Os tratou. E quando se preparava para fazer cirurgia de reconstrução mamária, descobriu outro intruso no seu fígado.



A professora aposentada deixou de preparar a salada de maionese com manjericão de todo churrasco. E a comida de todo dia. O corpo debilitado lhe obrigou a contratar uma auxiliar de serviço doméstico. Ela não pode fazer muita força com os braços por causa da primeira intervenção cirúrgica.



— A doutora me disse "tu ganhaste dois bebezinhos" — se referindo aos braços que demandam cuidados especiais.



Quem cozinha atualmente é o marido, pois o seu tempo agora "é da dona Enilda", como conta. Nos últimos anos, os dois moravam mais tempo em Florianópolis do que no apartamento no bairro Tristeza em Porto Alegre.



Fecharam temporariamente o CTG Estância da Meia Lua na capital catarinense, fundado por eles, para fazer o tratamento em Porto Alegre. Antenor colocou em prática os conhecimentos da confraria masculina de culinária, um grupo de amigos no Estado vizinho que apresentava receitas novas a cada semana.



— Ele fazia pratos elaborados, muito bons. Mas no dia a dia, que precisa preparar vários ao mesmo tempo, ele se confundia todo. Agora está melhor — garante Enilda, rindo.



O que hoje é brincadeira já foi motivo de frustração:



— Eu sempre cuidei da casa sozinha. As outras pessoas fazem de um jeito diferente e isso me incomodava — lembra.



Antenor apressa-se a recolher as três bolsas quando escuta a funcionária do hospital chamar sua mulher para a área onde será feita a quimioterapia. No quarto de paredes claras, Enilda senta-se em uma poltrona grande de mãos vazias.



— Vamos ajeitar aqui — diz ele, com sua voz de comandante.



Pendura as bolsas no banheiro, tira um pequeno laptop para si, deixa do lado de Enilda um celular e lhe oferece as palavras cruzadas. A enfermeira entra, pega o medicamento e o coloca em um suporte de metal alto ao lado do assento, igual a aqueles usados para soro. O tubo onde pinga o remédio é conectado a um cateter implantado no peito dela. Passa o programa "Viver Bem" na TV. Toca o celular e Enilda atende:



— Oi! ... É, é, já tô aqui... Sim, sim, tudo bem... Ah, é, o pai da Carminha matou o Nilo! ... Tá, depois a gente conversa...Beijo!



Era a irmã mais velha, que mora em Santa Catarina. Sempre se falaram muito e com a doença, o ritmo se intensificou. De noite, se ligam no Skype e assistem à novela juntas. A outra irmã, que mora em Porto Alegre, também vive ligando. Enilda brinca que elas são suas "rastreadoras". Dali a pouco, chega mais um enquadrado nessa classificação: o filho de 32 anos, que chega a ligar dez vezes por dia para ela.



— Oi mãe, como tu estás? Então quer dizer que o pai mandou bem no jantar ontem? — puxa papo, camuflando sua constante preocupação e acrescentando mais um telefonema diário.



Feito uma criança grande



Na mesma zona sul da Capital, em outra família, o significado de bebê também ganha contornos mais carinhosos do que literais.



— Tá com frio, Melina? Olha, o pezinho tá gelado. Vamos colocar mais uma meiazinha? — sugere Glória Ângela Barth de Castro, 58 anos, que depois completa para quem assiste: — esse é o nosso bebezão — apresenta agasalhando uma senhora de 88 anos.



A idosa Melina da Silva Barth não responde. É chamada de Melina pelos filhos porque deixou também de responder por mãe. Ela apenas sorri com a dentadura de cima, enquanto a língua descompassada teima em escapulir dos lábios por baixo. Agarra-se na Mariazinha, uma boneca rosa com asas de borboleta.



— Melina, Melina, quer fazer xixi? — indaga Glória.



Como desconfia que o silêncio mais uma vez irá lhe recepcionar, nem espera reação. Pede ajuda à uma das irmãs. Cada uma se coloca de um lado da cadeira e a ergue. Depois uma vai na frente, segurando ambos braços e outra vai atrás, apoiando as costas da aposentada.



— Se a gente não leva ao banheiro, ela não pede. É o mesmo com alimentação e roupa. Parece que não sente — conclui uma das filhas.



Nem sempre foi assim. Dez anos atrás, Melina saracoteava pelo Centro de ônibus. Mas ela começou a se perder. Os motoristas dos coletivos a traziam até o portão. "Aqui é sua casa", diziam, olhando com cara feia para os filhos e apontando para o terreno grande que pertence à família há mais de 50 anos na Vila Nova.



Vez ou outra, a aposentada esquecia um nome, falava que tinha que lavar a roupa do Lúcio, o ex-marido falecido em 1972. Tudo era motivo de graça nas reuniões de família no domingo. Até que um dia o banco ligou:



— Sua mãe está ajoelhada aqui, fazendo escândalo, jurando que não demos a aposentadoria dela.



Preocupados, os filhos se reuniram na casa de um. Foram olhar a situação financeira de Melina e encontraram várias dívidas.



— Ela dizia que não tinha recebido e o banco, pra não se incomodar, fazia empréstimo — recorda Glória.



Como Glória sempre foi dona de casa e estava se separando, ficou decidido que ela se responsabilizaria pela mãe. Mudou-se para o lar da senhora "e aí foi uma briga só. Ela me batia, dizia que eu estava ali só para roubá-la", conta. A idosa chegou a esconder dinheiro dentro de uma pantufa costurada. Uma noite a encontraram com uma marreta no portão, tentando quebrar o cadeado no meio da madrugada, fugida. Foi diagnosticada com Alzheimer.



Um ano atrás, teve uma convulsão e as palavras, que já estavam escassas, foram se cessando de sentido. A desconfiança e a briga se transformaram devagar em dias pacatos. Na hora de dormir, Melina só fecha os olhos se seus pés alcançarem a cama da filha, encostada na sua. Antes do sono, Glória dá na boca o remédio da noite. Retira a medicação de uma caixa com várias pílulas.



— Só a Glória para se achar nesse monte de remédio — comenta uma irmã.



— Vamos papar? — pergunta Glória, dando de colher uma banana amassada com aveia e um pouco de leite.



Logo que se estabeleceu o acordo que ela iria cuidar da mãe, dois irmãos — de 10 — ficaram responsáveis por passear com a aposentada no final de semana.



— Vieram na primeira vez — afirma.



— E depois? — pergunto.



Ela ri sem graça e revira os olhos.



Um dos irmãos deixou de aparecer alguns anos antes de confirmar o diagnóstico. Foi visitar uma vez, questão de um ano atrás, ficou quinze minutos e partiu. Em silêncio. Assim como Melina fica na maior parte do tempo.



A mudez também toma conta da aula de ioga de Enilda. Só toca uma música que imita sons da natureza, ecoando do aparelho de som. Embora ela esteja fisicamente desacompanhada dos familiares, lembra que as classes foram pagas pelas irmãs e a carona veio do marido. Na turma com nove alunas, com idades entre 36 e 90 anos, a professora repete nove vezes em 60 minutos variações de frases como "Cada um tem seu ritmo e seus limites. Respeite isso."



Ela fala sobre o poder das mãos e pede que cada uma posicione as suas na parte do corpo onde mais necessita. Enilda toca na barriga na altura do fígado. Em Vila Nova, uma das filhas de Melina toca o joelho da aposentada, desviando a atenção da boneca para o seu rosto.



— Melina, tu sabe quem sou eu? — indaga.



— Não sei, minha filha.



— Melina tu me ama?



Ela balança a cabeça, confirmando. E rindo.



A tirania do pensamento positivo



Para a psicóloga do Centro de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento Luciane Slomka, não há como as relações se manterem iguais quando alguém na família precisa de cuidados especiais. Pode haver ou um fortalecimento dos laços afetivos ou um rompimento.



Embora haja exceções, na maior parte dos casos o futuro tende a maximizar ações do passado. Ou seja, se antes o grupo era unido, é esperado que, em vista de uma enfermidade, se agregue ainda mais. E vice-versa. A psicóloga ainda afirma que normalmente uma pessoa, que é a mais estável emocionalmente, deveria ser quem fica encarregada de ser a cuidadora do paciente.



O problema maior, no caso da geriatria, está quando acontece o oposto. Abandono. Ninguém quer se responsabilizar pelo idoso. De acordo com o chefe de serviço de geriatria do Hospital São Lucas, Rodolfo Herberto Schneider, outra dificuldade é quando existe um cuidador, mas ele é sobrecarregado.



Muitas vezes na ânsia por se mostrarem otimistas em relação à cura do familiar, os demais tendem a não deixá-lo falar sobre morte ou evidenciar qualquer sinal de tristeza. De acordo com a psicóloga do Centro de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento Luciane Slomka, esse tipo de comportamento pode ter efeito contrário e fazer com que o paciente se sinta ainda mais angustiado, pois não tem com quem compartilhar seus medos.



Por isso, cuidado também com a dita "tirania do pensamento positivo". O doente precisa de tempo para entender a sua fase de vida, o que pode leva-lo a períodos esperados de tristeza. E esses "pensamentos negativos" não podem ser abominados pelos outros como se exclusivamente por causa disso o paciente deixasse de encontrar a cura.



— Não basta carregar a doença e ainda tem que ter a responsabilidade de se curar. Isso sobrecarrega o paciente — defende a psicóloga.



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