quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Direto de Mariana: o difícil recomeço de quem teve a vida soterrada Reportagem dá início à jornada de Zero Hora ao longo do curso do Rio Doce, percorrendo o rastro de devastação deixado por rejeitos de mineradora


Direto de Mariana: o difícil recomeço de quem teve a vida soterrada Bruno Alencastro/Agencia RBS
Para sobreviventes da tragédia, povoado de Bento Rodrigues acabou: "Não existe mais e nunca mais vai existir" Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS
Por volta das 16h do dia 5 de novembro, quando a Barragem do Fundão começou a cuspir lama, o aposentado José do Nascimento de Jesus tinha casa, carro, uma pequena loja de artesanato e vestuário, um violão de estimação, fotos de família e tudo mais que acumulou ao longo de uma vida inteira.
Ao cabo de alguns segundos, viu-se apenas com uma bermuda, um par de chinelos e um telefone celular. Mais nada. Hoje, ao lado da mulher, Maria Irene de Deus, 76 anos, e de outras centenas de sobreviventes da enxurrada de lodo abrigados no município de Mariana (MG), junta forças para começar uma nova vida aos 70 anos.
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Inicialmente recolhida a um ginásio, agora a maior parte dos cerca de 800 ex-moradores de localidades atingidas em cheio pela tragédia, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, refugia-se em hotéis pagos pela mineradora Samarco. Esperam ser deslocados, nas próximas semanas, para casas alugadas na região.
O reinício, porém, é dificultado pelo nível de devastação imposto pela onda de rejeitos: os locais em que viviam, suas casas, seus antigos trabalhos não existem mais. Mais do que seus pertences, suas histórias de vida foram soterradas. Por isso, muitos custam a aceitar que o passado foi varrido para sempre.
— Quem sabe a nossa casinha esteja debaixo da lama. Vai ver que a lama passou por cima, e ela está lá embaixo. Pode ter sobrado alguma coisa... — sussurra Maria ao pé do ouvido de José, no corredor diante do quarto 25 do Hotel Providência, onde passaram a morar por tempo indeterminado.
— Deixa disso, mulher. Não sobrou nada. Nossa casa foi levada com tudo. Nada ficou no lugar. Bento Rodrigues não existe mais e nunca mais vai existir – responde ele.
Ao lado da mulher, Maria Irene, João Nascimento de Jesus (centro) toca músicas ao violão para disfarçar a tristeza pela destruição de "seu paraíso"
Foto: Bruno Alencastro / Agência RBS
Bento Rodrigues, o epicentro da tragédia, localizado a 23 quilômetros da sede municipal, é o nome oficial do que Jesus costumava chamar de "meu paraíso" — o pedaço de terra onde era conhecido por todos, tocava seu violão e esperava passar seus últimos anos em sossego. Foi expulso de lá pela onda gigantesca de rejeitos minerais que serpenteou morro abaixo até engolir o subdistrito de Mariana.
— Corremos e pegamos carona no último carro que deixou a baixada — conta o aposentado, que comprou um violão novo e disfarça a tristeza tocando músicas ao anoitecer.
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A empresária Sandra Dometirdes Quintão, 43 anos, escapou com a filha Ana Amélia, dois anos. Ela vivia e trabalhava em um casarão histórico que serviu de refúgio a tropeiros, décadas atrás, foi moradia de seus pais e, até o começo do mês, funcionava como bar, restaurante e pequena pousada.
— Quando olhei para trás, vi o andar de cima rodopiar e afundar na lama. Não quero nunca mais voltar para Bento e ver como aquilo lá ficou, porque a saudade é grande demais — conta Sandra.
Graças à boa vontade da gerência do hotel, foi cedida uma cozinha para ela voltar a preparar coxinhas, pés-de-moleque e cocadas e, assim, recuperar uma fonte de renda. Mas a comerciante ainda nem faz planos de reabrir um bar em outro ponto da cidade. Como outras centenas de pessoas que tiveram a antiga rotina engolida pela lama, primeiro pensa em refazer documentos, encontrar um novo lugar para morar e, só então, voltar a viver de fato.
Sandra Dometirdes Quintão, que teve o bar destruído pela lama, conta com a boa vontade de um hotel para voltar a preparar coxinhas
Foto: Bruno Alencastro / Agência RBS
A vigília pelos desaparecidos
Todos os dias, Aline Ferreira Ribeiro, 33 anos, cumpre o mesmo ritual. Sai de casa e ruma para o centro de controle municipal, em Mariana (MG), onde se concentram as informações sobre as vítimas da Barragem do Fundão. Chega de manhã, por volta das 8h, e vai embora à noite sob a angústia de não saber onde foi parar o corpo do seu marido.
— Eu não tenho mais esperança. Só espero que encontrem o corpo para eu poder sepultar o Samuel. Não é justo uma pessoa trabalhar tanto tempo para ficar esquecida desse jeito — desabafa a viúva e mãe de quatro filhos.
Ela conta que um colega de serviço de Samuel Vieira Albino, que trabalhava na barragem, viu o momento em que a lama o engolfou. Quatro trabalhadores estavam no mesmo local e perceberam o tsunami de barro se aproximando. Correram para os lados e conseguiram sair do trajeto da lama. Albino, porém, tentou escapar em uma caminhonete. Uma primeira ondulação ergueu o veículo, e uma segunda, mais alta, o encobriu para não mais ser visto.
Aline Ferreira Ribeiro diz ter perdido as esperanças de encontrar o marido vivo
Foto: Bruno Alencastro / Agência RBS

Diariamente, enquanto aguarda notícias, Aline encontra-se com Ana Paula Alexandre, 40 anos. Ana Paula segue idêntica rotina de Aline pela mesma razão: descobrir o paradeiro do marido, o operador de escavadeira Odinaldo Oliveira de Assis, 40 anos, que também trabalhava na barragem. Passam praticamente o dia inteiro sentadas à espera da notícia que trará, ao mesmo tempo, dor e algum alívio.
— Depois de 11 dias, a esperança vai embora — desabafa Ana Paula.
Nos primeiros dias, a mulher imaginava que o marido pudesse estar refugiado em um ponto de difícil acesso na mata ou preso dentro da escavadeira. Agora, ela só quer descobrir para onde a enxurrada de lama levou Odinaldo para, então, tirá-lo debaixo do chão barroso.
Rota da Lama
Na tarde do dia 5 de novembro, o rompimento da chamada Barragem do Fundão, em Mariana (MG), colocou em curso um dos maiores desastres socioambientais já vistos no Brasil.
Os 62 milhões de metros cúbicos de lama despejados morro abaixo — suficientes para encher 25 mil piscinas olímpicas — começaram a percorrer um trajeto de mais de 500 quilômetros por vales e rios que deverá desaguar no mar do Espírito Santo.
Zero Hora percorre o rastro de devastação deixado por esse tsunami de rejeitos a fim de documentar alguns dos principais impactos ambientais e materiais na população provocados pela tragédia ao longo do curso do Rio Doce. A primeira parada foi no município de Mariana, onde a localidade de Bento Rodrigues registrou mortes, desaparecimentos e foi praticamente extinta pela força do mar barroso que contamina solos e rios, aniquila fauna, flora e compromete o abastecimento de água de cidades inteiras.

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